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Durante muito tempo, o universo esportivo foi pensado e estudado sob a ótica masculina. Planos de treino, estratégias nutricionais e até métodos de recuperação eram baseados em pesquisas feitas com homens. Mas o corpo da mulher é diferente — e ignorar o ciclo menstrual é ignorar um dos fatores mais poderosos que influenciam desempenho, energia e recuperação.

A boa notícia é que cada vez mais atletas e treinadoras vêm compreendendo que o ciclo hormonal feminino não é um obstáculo, e sim uma ferramenta estratégica. Entender como ele funciona pode transformar completamente os resultados — dentro e fora do treino.

O corpo feminino e suas fases

O ciclo menstrual é o conjunto de mudanças hormonais que ocorrem, em média, a cada 28 dias. Ele é dividido em quatro fases principais, cada uma com características físicas, emocionais e metabólicas próprias.

1. 

Fase menstrual (dias 1 a 5)

É o período em que ocorre o sangramento. Os níveis de estrogênio e progesterona estão baixos, o que pode causar queda de energia, maior sensibilidade à dor e leve alteração no humor.

👉 É uma fase ideal para treinos leves, focando em mobilidade, alongamento e descanso ativo.

2. 

Fase folicular (dias 6 a 13)

O estrogênio começa a subir, aumentando a disposição, a força e o foco. O metabolismo acelera, e a mulher tende a se sentir mais confiante.

👉 Aqui é o momento perfeito para intensificar o treino, explorar cargas maiores e buscar desempenho.

3. 

Ovulação (dias 14 a 16)

O estrogênio atinge o pico e há liberação do óvulo. A força e a motivação estão no auge, mas também cresce o risco de lesões, já que o aumento do hormônio relaxina deixa ligamentos mais flexíveis.

👉 Treinos intensos são bem-vindos, mas é importante reforçar o aquecimento e o cuidado com a técnica.

4. 

Fase lútea (dias 17 a 28)

A progesterona sobe, e muitas mulheres sentem inchaço, cansaço e alterações de humor. A temperatura corporal aumenta e o corpo tende a reter líquidos.

👉 É uma fase em que o treino deve ser adaptado: mais foco em resistência moderada, recuperação e equilíbrio emocional.

Hormônios e performance: o que a ciência mostra

Os hormônios femininos têm impacto direto no metabolismo e na resposta ao exercício.

  • Estrogênio: melhora a oxigenação muscular, reduz inflamação e ajuda na recuperação.
  • Progesterona: tem efeito termogênico e aumenta a quebra de gordura, mas pode reduzir a tolerância ao calor e à fadiga.
  • Relaxina: aumenta a flexibilidade, mas exige mais atenção às articulações.

Um estudo publicado no British Journal of Sports Medicine mostrou que mulheres que adaptam seus treinos ao ciclo menstrual têm até 25% mais ganho de força e menor risco de lesões.

Outro dado, da International Journal of Sports Physiology and Performance, indica que ajustar intensidade e volume de treino conforme o ciclo melhora a recuperação muscular e o equilíbrio hormonal.

Nutrição cíclica: comendo de acordo com as fases hormonais

A alimentação também pode ser ajustada conforme o ciclo.

Durante a fase folicular, o metabolismo é mais eficiente — é hora de investir em carboidratos complexos e proteínas magras.

Na fase lútea, há maior tendência à retenção de líquidos e vontade de doces; incluir alimentos ricos em magnésio (como cacau, aveia e castanhas) ajuda a equilibrar o humor e reduzir a ansiedade.

Durante a menstruação, o ferro é um nutriente essencial, já que há perda significativa desse mineral. Carnes vermelhas magras, feijão e vegetais verde-escuros são grandes aliados.

Essa adaptação alimentar ajuda não só na performance, mas também no bem-estar geral.

A importância da escuta corporal

Cada mulher vive o ciclo de forma única. Algumas sentem cólicas fortes, outras quase não percebem mudanças. Por isso, o segredo está na autopercepção.

Registrar como você se sente em cada fase — energia, sono, apetite, humor — é um primeiro passo poderoso. Aplicativos de monitoramento menstrual ou até simples anotações no celular ajudam a identificar padrões e adaptar treinos de forma mais precisa.

Atletas de elite, como a jogadora de futebol Megan Rapinoe e a corredora Paula Radcliffe, afirmam que conhecer o ciclo foi decisivo para entender quando seu corpo estava no auge ou precisava de descanso.

Quando o ciclo é irregular

Treinos muito intensos, estresse crônico ou dietas restritivas podem causar amenorreia (ausência de menstruação). Isso é comum em atletas de alto rendimento, mas não é normal.

A ausência de ciclo indica desequilíbrio hormonal e pode levar à perda de massa óssea, queda de desempenho e maior risco de lesões.

A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) alerta que a amenorreia não deve ser ignorada. O corpo precisa de equilíbrio energético — ou seja, consumir calorias suficientes para sustentar o nível de treino e as funções vitais.

Treinar com o ciclo: estratégia e inteligência

Usar o ciclo a favor é uma forma de inteligência corporal.

Veja um exemplo de como ajustar o treino:

  • Fase menstrual: priorizar recuperação, yoga, alongamentos ou treinos regenerativos.
  • Folicular: investir em força e intensidade — é o melhor momento para aumentar cargas.
  • Ovulatória: foco em explosão e desempenho, com cuidado para não exagerar.
  • Lútea: reduzir intensidade, priorizar treinos técnicos e descanso ativo.

Essa periodização natural ajuda o corpo a evoluir sem sobrecarga e com mais constância.

A mente também sente

Além das mudanças físicas, o ciclo menstrual afeta a mente e o comportamento.

Durante a fase lútea, por exemplo, a queda de serotonina pode causar irritabilidade, sensibilidade emocional e menor motivação.

Reconhecer isso é essencial para não se cobrar demais.

Nem todo dia é dia de recorde pessoal — e tudo bem. O descanso e o autocuidado também fazem parte do desempenho.

Estudos da University College London mostram que mulheres que ajustam expectativas e intensidade emocional conforme o ciclo relatam maior consistência nos treinos e menor incidência de burnout esportivo.

O papel do treinador e da equipe técnica

Falar sobre ciclo menstrual ainda é tabu em muitos ambientes esportivos.

Mas essa conversa precisa acontecer — não só entre mulheres, mas também com técnicos, preparadores e nutricionistas.

Quando a equipe compreende as variações hormonais, o planejamento se torna mais inteligente e os resultados aparecem naturalmente.

Treinar uma mulher como se ela fosse um homem é desperdiçar uma vantagem biológica: a ciclicidade.

O equilíbrio é a chave

Não existe “melhor” ou “pior” fase do ciclo. Cada etapa traz oportunidades diferentes.

A fase folicular pode ser ótima para recordes, enquanto a lútea pode favorecer o foco em técnica e consciência corporal.

Respeitar o ritmo natural do corpo é uma forma de fortalecer não só a performance, mas também o vínculo entre corpo e mente — um diferencial enorme para quem busca longevidade esportiva.

Conclusão

Ser mulher e atleta é viver em constante transformação — e isso é uma vantagem, não uma limitação.

O ciclo menstrual é um mapa biológico que mostra o momento ideal para se desafiar e o momento certo para se regenerar.

Quando a mulher entende o próprio corpo, ela ganha autonomia e sabedoria.

Não é sobre treinar menos — é sobre treinar melhor, com inteligência hormonal e respeito à fisiologia feminina.

Como resume a triatleta brasileira Fernanda Keller:

“Quando aprendi a treinar com o meu corpo, e não contra ele, tudo mudou. O ciclo deixou de ser um incômodo e virou meu relógio interno de performance.”

Referências

  • British Journal of Sports Medicine. Menstrual Cycle and Athletic Performance.
  • International Journal of Sports Physiology and Performance. Hormonal Fluctuations and Recovery.
  • Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM). Amenorreia e equilíbrio energético em atletas.
  • University College London. Psychological Variability During the Menstrual Cycle.
  • Deram, Sophie. Comer, Treinar e Viver em Harmonia com o Ciclo Feminino.